Espirais

“É verão e ninguém me perguntou se estava pronta. 

Mas o meu próprio corpo não me pergunta se estou pronta (…), porque é que o verão haveria de perguntar?”

É verão e ninguém me perguntou se estava pronta.

Mas o meu próprio corpo não me pergunta se estou pronta quando deixa de saber respirar, ou só sabe andar a tremer, ou quer correr e não pode, ou não consegue largar as mesmas espirais uma e outra vez…, por isso, porque é que o verão haveria de perguntar?

Está calor — que eufemismo! –, e o meu cérebro (como a maioria dos cérebros, de acordo com a minha experiência como observadora) bloqueia. Mas, no meu caso, isto também é um eufemismo (começo a achar que não conheço muitos mais recursos expressivos). Porque ele faz um duplo, triplo, quadruplo mortal para as espirais. Qual surfista, ele apanha as ondas que se vão, progressiva mas rapidamente, tornando gigantes, perde-se nos seus túneis que depressa se transformam em espirais, quais furacões que (por enquanto) não o matam mas não o deixam parar de girar, sem nunca ver o fundo e sem voltar à superfície para respirar. Daqui podemos concluir que 1) ele não sabe surfar e 2) eu não percebo de agitação marítima (nem de desportos aquáticos). Mas acho que passa a ideia.

Só que não, a ideia não passa. A ideia enrola-se nela própria: “não és boa o suficiente”, “não percebes nada disso”, “não mereces aquilo”, …. E se todos passam, num momento ou noutro, por ondas deste género, nem todos ficam presos regularmente nas espirais. E se o meu cérebro é o surfista, a minha ansiedade é a prancha que o puxa para dentro delas. A minha ansiedade pode ser conseguida com uma dose daquilo a que tenho vindo a chamar de “stress saudoso” (coisas que não aconteceram ainda e podem muito bem nem vir a acontecer), meia dose de stress normal (prazos, pessoas, doenças,… episódios de Westworld), 4 quilos de baixa autoestima (pun intended, ah!), e umas pitadas de síndrome do impostor. Tchanam!, temos a prancha, é só esperar que o meu cérebro suba lá para cima e vá à sua vida — novamente, fica claro que não percebo disto porque as pranchas ficam a boiar (não é?!), mas deixem-me em paz, estou a tentar tornar a minha ansiedade numa coisa bonita, shiu.

Estou a escrever de dentro de uma espiral. Ou talvez sejam várias, por esta altura é difícil de dizer. Escrevo porque quero voltar à superfície, mas essa, como já disse, também é difícil de ver. Perto do fundo, pelo menos o sal mistura-se com o mar. Talvez amanhã, ou depois, já dê para respirar.

Quando não se passa das ondas, quando não somos puxados para o fundo e não lutamos com todas as forças para não nos afogarmos, é demasiado fácil dizer que não há problema nenhum com a prancha, que ela não existe ou que ela não é nada. Ou que há pranchas piores. Mas não é por elas existirem que a minha se torna menos real. Não é por haver situações e vidas piores, dores e problemas maiores, que eu não me posso sentir mal pela minha prancha estragada. Desvalorizar os danos é uma das coisas que os faz reproduzirem-se como um vírus. Ignora-os por algum tempo e contaminas uma aldeia inteira.

O estigma em torno dos surfistas de espirais não facilita a saída de dentro delas. Para combatê-lo, o melhor é falar sobre ele, o que só por si levanta a maré e nos puxa para novas espirais. Porque, pelo menos por agora, continua a não ser social e/ou profissionalmente aceitável dizer que não conseguimos ir trabalhar naquela semana porque o nosso cérebro bloqueia, mergulha em espirais, tem crises de ansiedade ou que se autossabota. É segredo o esforço hercúleo que temos de fazer para conseguir sair da cama, não pelo sono mas porque o nosso corpo treme e as lágrimas não param. Por agora, temos de pedir desculpas, rezar a qualquer divindade para não sermos despedidos, tentar ouvir quando falam para nós e esboçar um sorriso, porque o que é que interessa que nos estejamos a afogar em remoinhos, o que é importante é produzir, porque os prazos estão aí mesmo ao virar da esquina!

Caros companheiros surfistas de espirais, isto é para vocês. Nos vários anos em que tenho vindo a tentar remendar a minha prancha, penso ter chegado finalmente ao cerne da questão. Não devemos gastar tanta energia a tentar colar os bocadinhos, ou a comprar ou fazer pranchas novas. Não vale a pena, ela vai estar sempre lá, esburacada e partida, e o nosso cérebro vai agarrar-se sempre a ela. Em vez de lutarmos contra ela, temos de lutar com ela e aceitá-la assim, imperfeita. E reconheçam, de uma vez por todas, que há força (tanta!) e coragem em fazê-lo. Não importa que mais ninguém o veja, desde que nós, os surfistas desleixados, o vejamos. E, mais tarde ou mais cedo, acabaremos por dar à costa.

É verão e ninguém me perguntou se estava preparada. Não estou, nunca estou, para nada. Provavelmente nunca vou estar, mas não tem mal.

Aos possíveis leitores que têm a felicidade de saber surfar sem se afundar em espirais, espero que consigam imaginar como é viver com as nossas pranchas. E daí talvez nem consigam, com tantas tentativas de piada pelo meio (dá para perceber que uso o humor quando estou desconfortável?!). Enfim, fica uma tentativa, tantas outras virão: afinal, as espirais são as minhas musas.

-Ana

a vitória do extraordinário

Sim, este é um texto sobre o Amar pelos dois e sobre a vitória dos irmãos Sobral na Eurovisão.

Rendida a tudo o que a canção transmite desde o primeiro momento em que a ouvi, nunca imaginei que tivesse qualquer hipóteses de ganhar fosse o que fosse. E esta minha perplexidade diz muito do meu preconceito para com os outros, que julgava serem indiferentes a algo verdadeiramente belo, por tantas vezes testemunhar tantas outras belezas serem ignoradas por fugirem às modas e ao normal. Esse preconceito fez-me crer que junto do espalhafato sonoro e visual que são regra na Eurovisão a canção dos Sobral cairia no vazio. Aqueles eram, aliás, os motivos que me faziam ver, rir e julgar o programa Europeu, acabando sempre por me preencher por uma enorme vergonha alheia e fazendo com que desligasse a televisão antes sequer de saber resultados, mesmo quando havia músicas de que gostava ainda em jogo.

O meu preconceito não me permitiu pensar que a composição de Luísa fosse ganhar, precisamente por ser de qualidade. Independentemente de se gostar do estilo, da voz e dos instrumentos, qualquer pessoa que tenha uma formação musical consegue perceber a beleza da canção. E o meu preconceito partiu daí. É que a música de que gosto, aquela que sei que é forte em termos musicais, que tem letras lindas e com significado, qualquer que seja o género, raramente é aquela que a maioria aprecia. E isso, como em qualquer outra coisa, pode tornar-nos arrogantes de certa maneira, ao pensarmos que só nós sabemos o que é “bom”. Aqui entramos no que o Salvador disse várias vezes (e não apenas quando aceitou o prémio), e na arrogância que alguns lhe apontam por negar a música de plástico, dos artifícios, feita em laboratórios electrónicos quase sem resquício de instrumentos musicais fisicos, em detrimento da “boa” música, a que tem sentimento, a que ele faz. Como já se deve ter percebido, eu não podia concordar mais com ele. Mas penso que também já mostrei que compreendo, até certo ponto, que este preconceito pode ser visto como arrogante. Não posso, contudo, rotulá-lo nesses termos, quando não foi mais do que consistente com o que havia dito e redito durante todo o processo Festivaleiro. Mas adiante!

O meu preconceito partiu daí, mas também partiu de outros aspectos da minha vida, porque não é, de todo, do que entendo por boa música aquilo que pretendo falar aqui. É desta vitória do extraordinário e do incompreendido. Do bom que não quer fama, apenas um reconhecimento de que o seu trabalho tem qualidade; do estranho que diz o que pensa; daquele que tem uma visão idealista do mundo e a quer partilhar com todos, continuando mesmo quando é ridicularizado e desprezado, porque essas coisas não interessam, o que importa é a mensagem passar. E passou, oh se passou.

O orgulho e a felicidade que sinto não se devem apenas ao nome e a música do meu país serem reconhecidos internacionalmente. Não, não, o que me fez verter várias, muitas, tantas!, lágrimas não foi só o ter sido uma vitória com boa música, de um bom cantor, de uma boa compositora, de uma língua maravilhosa. Não. Foi o ter sido também a vitória do fora-da-caixa, do diferente, do simples, do humilde e do trabalhador. Não existiram chico-espertices, nem máscaras. Não houve exageros. Foi a pureza de algo e alguém incomuns que conquistou a Europa no sábado à noite.

Pelos meus olhos, esta foi uma vitória dos desadequados, dos estranhos, dos inconformados, dos genuinos. E é por isso que a vejo agora como minha, e não tanto por ter sido de Portugal, em Português. Foi uma vitória dos constrangidos e dos desajeitados. Foi uma vitória de tudo o que durante os últimos meses têm apelidado o Salvador, mesmo que eu não concorde com metade do que lhe chamaram. Afinal, num ano em que se celebrava a diversidade, venceu um alguém verdadeiramente diferente, extraordinário, num troféu que me dá uma bofetada na cara, porque afinal os “outros” ainda ouvem alguém fora do comum. E se gostam do que ouvem… O Salvador ganhar foi para mim algo que tenho dificuldade expressar seja de que maneira for. Já tinha rabiscado este texto depois da canção ter sido apurada para a Eurovisão, e agora tive mesmo de acabá-lo. É que mostrou-se que, afinal, os desajustados importam mesmo, as nossas vozes, mesmo contra maré, podem ser ouvidas. Vale a pena tentar que a nossa mensagem seja ouvida, custe o que custar. E o mais bonito e irónico disto tudo é que ele conseguiu que a mensagem dele passasse de uma forma tão despercebida que pareceu quase sem querer.

Os irmãos Sobral não são heróis nacionais. Provavelmente também nem se revêem neste texto, nem é esse o objectivo. Este é o significado da sua vitória para mim e ninguém consegue diminuir ou retirar-me esta força que me deram, assim, sem estar à espera. E estes são os sentimentos pelos quais vale a pena viver.

Sim, este foi um texto sobre o Amar pelos dois e sobre a vitória dos irmãos Sobral na Eurovisão. Sim, foi também o meu primeiro texto (neste blog) em Português, porque é isso que este momento, este sentimento, pede de mim.

-A.

[crónica publicada pela primeira vez a 17 de Maio de 2017 no P3]

now it’s official

So, I finally decided to start a blog…. Again.

So, I finally decided to start a blog…. Again. Let’s hope this one goes better than the ones I used to have. It probably won’t, but that’s okay.

I don’t really know what this blog will be about. I have so much trouble just choosing the genre of it, in that step where WordPress asks it. But hey, here it is. It isn’t much, but it’s a little bit of me.

This was supposed to be in my native language, Portuguese, but somehow I started writing in English. This was also supposed to be a place where I’d write down whatever I wanted without any editing, completely raw and with my natural confusion, and I guess I’ll manage that (one point for me!).

I don’t know what to expect of this, so I can’t really tell you what to expect of it either. I don’t know who you are, if there’s any “you” at all. Me? I’m a daughter, a sister, a friend of many; I’m a student of the third (and last) year of Archaeology at uni. But mostly, I’m a 21 year old, currently sitting at a cold attic-room, who has to write since she can’t fall asleep.

I won’t promise to write everyday, or every night, or every month, since I don’t know what I can really do. But I will write more – hopefully something more interesting than this first post.

 

-A